Nuances da Linguagem em Uso: A Síndrome de Down em foco

A linguagem humana é a maior característica que nos difere de outras espécies. Disso já sabemos há muito tempo. É com ela que interagimos, nomeamos, mentimos, fazemos as pazes, damos um novo sentido a um ponto de vista antigo, ensinamos, aprendemos, além de uma vasta gama de ações vislumbrando a colaboração com os nossos semelhantes. É por meio da linguagem que tudo ao nosso redor existe. Como diz a epígrafe nesta obra “As coisas não são nada em si. O mundo não fala. Sou eu que dou a ele a minha palavra”. De modo honroso, também postulou, por essa mesma direção, nosso eterno filósofo Luiz Antônio Marcuschi, em seu texto “Atos de referenciação na interação face a face”, de 2001, a respeito de as coisas não estarem etiquetadas, ou prontas no mundo. Vivemos negociando sentidos a todo instante, seja com intencionalidade, seja de forma inconsciente. Sendo assim, nada está pronto, mas disponível para a nossa negociação cultural, corroborando com as ideias de Michael Tomasello, em seu livro traduzido para a língua portuguesa “Origens Culturais da Aquisição do Conhecimento Humano”, de 2003. Diante desse breve traçado, apresento o Volume 2 do e-book por mim organizado “Nuances da Linguagem em Uso”, publicado pela Editora da Universidade Estadual da Paraíba (EDUEPB). O presente volume tem o seu escopo em discussões sobre Síndrome de Down (SD). Tendo em vista que foi o tema da minha tese de doutorado em Linguística, vinculado ao Programa de Pós-graduação em Linguística da UFPB (PROLING), com período sanduíche na Universidade Estadual 14 de Campinas (UNICAMP), decidi investir na organização deste produto contando com a participação de uma gama de profissionais. Para isso, conto com a colaboração de pesquisadores de inúmeras instituições nacionais e internacionais, de regiões distintas, mas com o mesmo objetivo: entender melhor o funcionamento da linguagem de pessoas com SD. Os autores que trouxeram seus exímios textos são profissionais dos seguintes órgãos: Universidade Estadual da Paraíba (UEPB), Universidade Federal da Paraíba (UFPB), Tribunal de Justiça da Paraíba (TJPB), Universidade Federal de Pernambuco (UFPE), Universidade Estadual do Sudoeste da Bahia (UESB), Secretaria de Educação de Sergipe (SEDUC/SE), Universidade Federal de Sergipe (UFS), Universidade Montes Claros (UNIMONTES), Instituto Federal do Sul de Minas (IFSULDEMINAS), Centro Universitário Moura Lacerda, Universidade de Mogi das Cruzes (UMC), Universidade São Francisco (USF), Universidade Federal de Santa Maria (UFSM), Universidad de Talca (Chile), Universidad de Salamanca (Espanha), Instituto de Neurociência de Castilla y León (Espanha). O leitor será presenteado com a circulação gratuita de mais este cauteloso trabalho, com vieses díspares e ao mesmo tempo tão próximos, por tratarem de uma mesma questão (a SD). Diante disso, apresento um esboço de cada texto. No capítulo 1, faço uma breve tomada de notas históricas sobre o surgimento dos primeiros estudos acerca da SD. Não foi meu intuito esgotar os indícios de registros materiais, culturais ou biomédicos. Se faz necessário iniciar esta obra com um apanhado de descobertas sobre a presença de sujeitos com SD em culturas e épocas distintas, tendo em vista que o crescente de pesquisas aqui presentes como colaboração vai mostrar algumas nuances de pontos de vista envolvendo a questão da síndrome, sob diversificados enfoques. Para tanto, trago exemplos de descobertas arqueológicas, além de representações de obras de arte supostamente mostrando a presença de sujeitos com SD há muitos anos no convívio social. No capítulo 2, Ana Cláudia Sousa MENDONÇA (SEDUC/SE) e Rita de Cácia Santos SOUZA (UFS) explicitam os passos da formação dos professores da Associação de Pais e Amigos dos Excepcionais de Aracaju (SE), no período de 1968 a 1988 para atuação com alunos 15 com SD. Levando em consideração o recorte temporal apresentado, busca destacar alguns pontos importantes da sétima Constituição Federativa do Brasil de 1988, no que concerne ao aporte teórico voltado para a Educação Especial. De cunho bibliográfico e documental, com abordagem na História Cultural, dialoga com estudiosos que falam da importância da memória social, individual e coletiva, como dos aspectos peculiares de cada sociedade, que diferem a história da memória e outros que agregam pertinência à temática trabalhada. No capítulo 3, Evani Andreatta Amaral CAMARGO (Professora Aposentada do Centro Universitário Moura Lacerda) tem como proposta trazer algumas reflexões sobre a inclusão de alunos com SD na escola regular. Tais reflexões foram elaboradas a partir de orientações que a autora realizou em Trabalhos de Monografias de um Curso de Especialização, na perspectiva teórica de Vigotski e Bakhtin. Os trabalhos ocorreram em cidades dos estados do Sudeste e Nordeste, o que permite que se faça um mapeamento parcial da inclusão de alunos com SD. Tais trabalhos foram feitos a partir do posicionamento de professores, gestores e alguns pais de sujeitos com SD, que frequentam a escola regular. Como resultados, a pesquisadora discute que, o que está garantido por lei ainda não se efetivou na prática e isso tem interferido no processo de inclusão. No capítulo 4, Cícero Teixeira MAIA (TJPB) e Robson Antão de MEDEIROS (UFPB) trazem um texto que consiste numa análise do protocolo a ser eventualmente adotado pelas autoridades e médicos brasileiros relativamente às pessoas com SD, ou outra deficiência, em hipóteses de necessidade de decisão acerca de quem deve ter prioridade no recebimento de cuidados intensivos quando as UTIs não conseguem absorver todas as demandas. O problema estudado nessa pesquisa é uma suposta relativização protocolar adotada pelas autoridades médicas e sanitárias, que porventura não priorize o atendimento a pessoas com SD, quando da realização de triagem na pandemia de Covid-19 em relação aos não deficientes, pode caracterizar discriminação e supressão de direitos fundamentais? A hipótese defendida é no sentido de que em função da situação peculiar de vulnerabilidade física e social no qual esse grupo de pessoas se encaixa a resposta ao problema posto é no sentido positivo. 16 Já no capítulo 5, Daniel Antunes FREITAS (UNIMONTES), Wane Elayne Soares EULÁLIO (UNIMONTES) e Helena Luz Ribeiro Santos de Galliaço PRATA (UNIMONTES) trazem um questionamento: será que a Educação Superior brasileira se apresenta acolhedora e com anseios de oportunizar ingresso universitário aos cidadãos com SD? O presente estudo trata dos desafios educacionais encontrados por professores, alunos da educação especial e famílias no que tange ao acesso às questões de acesso, permanência (flexibilidade curricular), em decorrência da excepcionalidade proveniente dos alunos e alunas com SD no Ensino Superior. Quanto ao capítulo 6, juntamente com Marianne Carvalho Bezerra CAVALCANTE (UFPB), mostramos cenas de interação entre fonoaudiólogas e crianças com SD, com o objetivo de apresentarmos o funcionamento do Sistema de Referenciação Multimodal (SRM), ou seja, o encadeamento de elementos da linguagem que fornecem pistas para a produção de sentidos no engajamento conjunto dos parceiros. O SRM corrobora com nosso postulado sobre a língua não ser estanque, nem uma etiquetagem de coisas do mundo, mas uma negociação que envolve retomadas, associações de ideias, repetições de termos etc., em uma perspectiva dialógica. Além disso, defendemos a esteira teórica da linguagem enquanto instância multimodal. No que tange ao texto do capítulo 7, Ivone PANHOCA (UMC) e Naraí Lopez BARBETTA (USF) abordam aspectos inerentes à SD como o diagnóstico, a nomenclatura utilizada, o prognóstico, a qualidade de vida da criança e de seus cuidadores, as possibilidades de intervenção e de acompanhamento a longo prazo e o momento da inclusão escolar e como essas reflexões e considerações permeiam a rotina dos pais e familiares, dessa criança, a partir da descoberta da T21. Os pontos levantados são de extrema importância ao se considerar que as crianças com SD possuem um grande potencial a ser desenvolvido, mas precisarão de mais tempo e estímulo da família e de especialistas para adquirir e aprimorar suas habilidades. Foram analisadas as respostas dos genitores de uma criança com T21 (gênero masculino) a dez questões que integraram a entrevista semi-estruturada, com o objetivo de captar as opiniões e reflexões individuais. Em seguida, no capítulo 8, Ana Paula Ramos de SOUZA (UFSM), 17 Diogo Ribas dos SANTOS (UFSM) e Bianca Fraga HALBERSTADT (UFSM) fazem uma reflexão sobre a importância da sustentação de um lugar de enunciação para o desenvolvimento de linguagem e diminuição do sofrimento psíquico de crianças com SD. Os autores analisam para tanto a evolução de um menino, atendido desde seu primeiro ano de vida, em um enfoque interdisciplinar em uma intervenção a tempo centrada na família, em que o diálogo e o brincar constituíram formas de facilitar o processo de reidealização do filho com deficiência pela mãe, levando-a a assumir seu papel parental de modo adaptado às demandas do filho. Essa abordagem se mostrou satisfatória para que o menino evoluísse na aquisição da linguagem e para que se constituísse de modo neurótico, com diminuição do sofrimento psíquico. A respeito do capítulo 9, Julyane Feitoza COÊLHO (UFPB), Francisco Tiago MEIRELES DA SILVA (UFPB), Gustavo Lopez ESTIVALET (UFPB) e Giorvan Ânderson dos Santos ALVES (UFPB) apresentam uma revisão teórica e empírica dos estudos envolvendo a SD, apraxia da fala e eletroencefalografia em crianças. O capítulo inicia com uma contextualização dos estudos da linguagem em crianças com SD, em seguida, são apresentadas especificidades da apraxia da fala nestas crianças. Na sequência, é apresentado um modelo teórico/empírico de produção da fala com resolução temporal dos processos linguísticos através de estudos de eletroencefalografia, destacam-se três fases: seleção lexical, recuperação do código fonológico e articulação motora. Enfim, são revisados estudos sobre a apraxia da fala em crianças com SD com a eletroencefalografia. No capítulo 10, Rosane Seeger da SILVA (UFSM) e Elenir FEDOSSE (UFSM) investigam as concepções de trabalhadores de diferentes núcleos profissionais, tanto daqueles com grande experiência no atendimento de pessoas com SD, quanto daqueles com menor experiência. Trata-se de um estudo de abordagem quali-quantitativa, realizado com trabalhadores da Educação Especial e da Atenção Primária à Saúde de um município de médio porte do interior gaúcho. Foram realizadas entrevistas com os trabalhadores, as quais foram gravadas, transcritas literalmente e analisadas descritivamente. Participaram 88 trabalhadores, de ambos os sexos e de diferentes formações; os da Educação Especial (com maior experiência) apresentaram conhecimentos 18 específicos sobre a síndrome e suas implicações no cotidiano enquanto que os da Atenção Primária (com menor experiência) mencionaram as características fenotípicas da síndrome e as falhas da rede de assistência à saúde dessas pessoas. Com o texto do capítulo 11, Pedro GARCÍA MONTENEGRO (Universidad de Talca, Chile), Gabriel URRUTIA URRUTIA (Universidad de Talca, Chile) e Maximiliano GAETE ESPINA (Universidad de Salamanca e Instituto de Neurociencia de Castilla y León, España) convidam o leitor a refletir sobre a importância de valorizar o desenvolvimento e a implementação de experiências enriquecidas e contextualizadas que busquem a plena inclusão e autodeterminação das pessoas com SD, em suas comunidades e ao longo de suas vidas. Ressalta-se que o problema existente pode ser abordado a partir de um arcabouço ativista, baseado nos conceitos de memória-reminiscência autobiográfica e pensamento episódico futuro, uma vez que seu funcionamento facilita comportamentos mais cotidianos e vivenciais que afetam a autovalidação, autodeterminação, bem-estar e qualidade de vida. Esse olhar representa uma visão de mundo oposta à hegemonia neurobiológica, voltada para o déficit e o bem-estar que têm prevalecido até agora no estudo e abordagem das pessoas com SD. No capítulo 12, Nathália Luiz de FREITAS (IFSULDEMINAS) tem como objetivo apresentar as principais características linguístico-cognitivas associadas à SD e propor ações pedagógicas direcionadas ao ensino de língua materna escrita para alunos nessas condições. Longe de intentar esgotar o assunto ou sugerir soluções categóricas e definitivas, o propósito desse estudo é contribuir para o desenvolvimento de práticas educacionais que oportunizem a aquisição e o uso socialmente investido do sistema escrito nessa condição, tanto quanto possível. No que diz respeito ao capítulo 13, Marian OLIVEIRA (UESB), Vera PACHECO (UESB), Luana PEREIRA-SOUZA (UESB), Alaine Leite GAMA (UESB), Gilsara Madeira de SOUZA (UESB) e Lucrécia de Aquino SANTOS (UESB) mostram que o atraso no desenvolvimento linguístico é um dos principais comprometimentos que a pessoa com SD, ou T21, apresenta. Além do déficit cognitivo, as alterações no trato vocal podem comprometer o processo de aquisição do sistema fonológico da língua, por parte desses sujeitos. Considerando 19 esses aspectos, esse trabalho objetiva investigar a ocorrência de processos fonológicos de estrutura silábica na fala e na escrita de uma adolescente com SD, baseando-nos no sistema fonológico do português e na representação silábica proposta por Selkirk (1982). Os resultados desse trabalho reforçam a importância do estímulo precoce em crianças com SD para que o desenvolvimento da linguagem oral e escrita seja facilitado, bem como, contribuem para a compreensão de aspectos do processo de alfabetização desses indivíduos. O trabalho que resultou no capítulo 14, sob a autoria de Gabriela Regina Gonzaga RABELO (UFPB), Giorvan Ânderson dos Santos ALVES (UFPB), Ana Cristina de Albuquerque MONTENEGRO (UFPE) e Isabelle Cahino DELGADO (UFPB), tem como objetivo analisar o processo de apropriação da linguagem escrita de uma criança com SD e o papel dos mediadores nesse processo, considerando o contexto de letramento. A pesquisa é qualitativa, exploratória e retrospectiva, a fonte é documental e analisa o material escrito de uma aluna com SD no primeiro ano do Ensino Fundamental I. Nos achados observou-se que esta criança ampliou o seu conhecimento sobre o princípio alfabético, conhecendo todas as letras do alfabeto e aprendendo a manipular as letras na formação de sílabas, palavras e frases, não havendo – vale ressaltar – qualquer adaptação do conteúdo, já que no segundo semestre do ano foram apresentadas as irregularidades da língua à criança. Naquele período, as mediadoras exerceram um papel fundamental, oferecendo as mais diversas oportunidades e incentivos para que a aluna superasse todas as dificuldades que surgiram no percurso, buscando considerar seu ponto de vista, bem como suas capacidades cognitivas e linguísticas em uma perspectiva voltada ao letramento. Por fim, e tão exímio quanto os outros textos, o capítulo 15, de Carla Salati Almeida GHIRELLO-PIRES (UESB) e Giulia Castellani BOARETTO (UESB), é o resultado de estudos teóricos-metodológicos fundamentados na Teoria Histórico Cultural (THC), a qual considera que os processos mentais superiores são produtos da vida relacional dos homens em uma determinada sociedade e na Neurolinguística Discursiva (ND), que toma como ponto de partida a interlocução e a tudo aquilo que a ela diz respeito, pressupondo, também, a presença de uma variação funcional do cérebro determinada contextualização histórica 20 dos processos linguísticos-cognitivos. A pesquisa das autoras foi realizada com um grupo de jovens com SD denominado “Fala-Down - Jovens” que se reúne semanalmente para compartilhar suas vivências e participar de atividades realizadas pelos pesquisadores vinculados ao Programa de Pós-Graduação em Linguística (PPGLin) da Universidade Estadual do Sudoeste da Bahia (UESB), campi de Vitória da Conquista (BA). O objetivo proposto foi o de discutir como o manejo e a utilização da tecnologia digital possibilitaram ao grupo de pessoas com SD expor suas ideias e sentimentos em relação à reclusão, causada pelo Covid-19, ou seja, a importância da motivação para a realização de qualquer tarefa. Espero que o leitor, de qualquer área de conhecimento, seja beneficiado com os textos que seguem. Espero, ainda, que nosso ponto de vista sobre a SD, sobre o sujeito que a tem, seja ressignificado, ao entendermos que o diagnóstico da síndrome não é prognóstico para inaptidões na interação social e na negociação de sentidos, diante dos fatos cotidianos. O organizador João Pessoa, outubro de 2020. Publicação EDUEPB disponível no site: http://eduepb.uepb.edu.br/e-books