O que as pesquisas com e sobre crianças podem nos dizer em tempos de crise?

A pandemia gerada pela Covid-19 que iniciou em 2020 vem repercutindo de forma diversificada em várias esferas da vida humana, sendo também diferenciado o modo como países e grupos sociais e etários vêm enfrentando os seus efeitos. Caracterizada como crise sanitária, a pandemia produziu e mesmo intensificou crises de outras ordens, como econômica, social, educacional, emocional, dentre outras. No que diz respeito às crianças e suas infâncias – foco central das investigações e reflexões dos autores e das autoras desta obra, a partir de diversas perspectivas teóricas e metodológicas –, as repercussões têm apontado continuidades e rupturas no que tange ao modo como elas têm atravessado esse tempo, bem como na forma como são vistas e abordadas por adultos, sejam eles familiares ou docentes. A escola que acolhe crianças também tem sido convocada a se posicionar quanto a procedimentos didático-pedagógicos e formas de relação que mantenham vínculos para além daqueles relacionados a processos formais de aprendizagem e desenvolvimento. Outros aspectos têm sido evidenciados, e muitos deles estão presentes em artigos desta obra. Atentos a essas e muitas outras questões, pesquisadores e pesquisadoras vinculados a universidades situadas em várias regiões do país (UFCG, UFPB, UFBA, UNEMAT, USP, UNIRIO, UFVJM, UFMG, UFPR e UFRGS), de grupos de pesquisa e programas de pós-graduação que investigam temáticas sobre crianças, infâncias e outras relacionadas a esse grupo social, foram convidados(as) pelas líderes do Grupo de estudos e pesquisas infâncias, educação infantil e contextos plurais (GRÃO) (DGP-CNPq), organizadoras deste livro, a refletir sobre a pergunta geradora: O que as pesquisas com e sobre crianças podem nos dizer neste momento de crise? A pergunta inicialmente foi o fio condutor de um Ciclo de Debates, realizado no período de setembro a dezembro de 2020, fruto de uma parceria entre o GRÃO e o Programa de Pós-Graduação em Educação da UFCG, mais especificamente com a Linha Práticas Educativas e Diversidade. A ideia foi provocar reflexões a partir das produções de conhecimento em que cada pesquisador(a) se situa, considerando temáticas, metodologias e, sobretudo, o desafio de pensar trajetórias de pesquisa já consolidadas ou em construção na relação com o contexto sanitário, social, cultural e econômico pelo qual ainda passa todo o globo, com ênfase nas crianças e nos demais sujeitos relacionados a elas. Naquele momento, muitas reflexões se dirigiram às questões candentes que tocaram os(as) pesquisadores(as) no ato de suas falas, muitas das quais foram retomadas e apresentadas em vários dos artigos deste livro. Outras foram recolocadas ou mesmo trazidas pela primeira vez, como fruto de escolhas sobre temas que passaram a inquietar os(as) autores(as) no momento da escrita, indicando também continuidades das produções num tempo tão adverso, em que o mundo pareceu letárgico. Apesar do caos... continuidade, reinvenção e esperança falaram mais alto. O respirar necessário à vida. Em linhas gerais, as reflexões deram-se em duas direções: 1) apresentação de reflexões e de pesquisas realizadas no contexto da pandemia, considerando a problematização teórica e as pesquisas realizadas a partir da escuta de crianças, suas famílias e os docentes sobre os sentimentos e enfrentamentos diante do contexto de crise vivido; 2) apresentação e problematização de temáticas mais amplas, e, em alguns casos, passíveis de diálogo com o contexto da pandemia e das investigações realizadas pelos autores e autoras, considerando crises, desafios ou dilemas . A obra configura-se, em parte, como o registro de uma experiência reflexiva envolvendo pesquisa e crianças que foi, primeiramente, realizada no âmbito de uma forma comunicativa nova em relação a experiências mais recorrentes de transmissão de conhecimento próprias ao campo científico – o canal do Youtube do Centro de Humanidades da UFCG. Com essa publicação, situações vivenciadas e refletidas por pesquisadores e pesquisadoras, no primeiro ano da pandemia, ganham o estatuto de uma produção escrita que, junto a outras, propõem-se a ser uma das várias referências que ficarão como legado de reflexões geradas de forma concomitante e/ou subsequente ao primeiro acontecimento sanitário de expressão global do século XXI –olhando, com ênfase especial, para questões que atravessaram e continuam atravessando a vida das crianças, suas famílias e todo o tecido social que os constitui. O livro está organizado em duas partes. Na primeira, constam os textos que trazem apontamentos que iluminam o durante e o pós-pandemia, frutos tanto de reflexões conceituais como de pesquisas feitas com e sobre as crianças. Na segunda, estão os textos que trazem reflexões mais gerais que envolvem a criança, sem necessariamente se debruçarem sobre fenômenos relacionados diretamente à pandemia. Nos artigos que compõem a primeira parte, temos o ensaio de Sandro Vinícius Sales dos Santos (UFVJM) que, buscando responder à questão norteadora do livro, dialoga com a teoria crítica da cultura de Walter Benjamin, bem como com outros autores, com o objetivo de apresentar um quadro teórico que evidencie a potencialidade dos conceitos benjaminianos de infância, experiência e alteridade, com vistas a produzir pistas que permitam tanto profissionais quanto investigadoras(es) da Educação Infantil superarem, à luz dos apontamentos das crianças, este momento de crise. Como conclusões, o autor aponta que tanto durante o distanciamento social, quanto no retorno às experiências presenciais em creches e pré-escolas, faz-se necessário aproximação sensível e acurada, por parte dos(as) profissionais que cuidam e educam as crianças, com os modos complexos e sutis pelos quais elas constroem suas experiências sociais. Isabel de Oliveira e Silva (UFMG), Iza Rodrigues da Luz (UFMG) e Levindo Diniz Carvalho (UFMG) refletem sobre a experiência de crianças, de oito a 12 anos, residentes na Região Metropolitana de Belo Horizonte, quanto às suas experiências durante os primeiros meses da pandemia de coronavírus, apresentando parte das informações construídas durante uma pesquisa em andamento. Logo, trata-se de uma pesquisa com crianças, que as escutou principalmente por meio de um questionário em meio virtual e em entrevistas à distância. Os resultados evidenciaram a centralidade da escola na experiência das crianças e a constatação de sua importância tanto na sociabilidade quanto nas aprendizagens. Luciana Pereira de Lima (UFU), Regiane Sbroion de Carvalho (UERJ) e Ana Paula Soares da Silva (FFCLRP-USP) apresentam dados parciais de uma pesquisa ampla, com foco em como as famílias avaliavam as vivências das crianças no contexto familiar e em relação às atividades propostas pelas creches/pré-escolas na realidade da pandemia. A pesquisa encontrou, na escuta das famílias, o meio para conhecer condições de espaço, atividades e tempos que estruturavam as vivências das crianças pequenas no início da pandemia. Seu objetivo principal é investigar a relação estabelecida entre família e instituição de educação infantil – caracterizou-se assim como uma pesquisa sobre crianças. É importante destacar, ainda, o achado que apontou a diferença entre bebês e crianças da pré-escola, com um vazio em relação às atividades possíveis de suporte para as famílias com crianças dessa faixa etária (zero a três anos), o que demonstra que, mesmo pertencentes a uma mesma categoria geracional, sobre os bebês recaem os maiores prejuízos e privações. Marlene Oliveira dos Santos (UFBA) trouxe para o debate a escuta da criança como um ato político-pedagógico. A autora problematizou a escuta de crianças mediante telas digitais, no cenário da pandemia de Covid-19, evidenciando como professoras escutaram as crianças e o que fizeram com o produto dessa escuta em suas ações pedagógicas. Para tanto, ouviu-se professoras da Educação Infantil que exercem a docência com crianças na rede pública de educação de um município baiano. Trata-se, pois, de mais uma pesquisa que se debruçou sobre as crianças. Conforme a autora, a escuta de crianças por intermédio de telas digitais também se constitui de um ato político-pedagógico, que pode ser experienciado tanto em situações da vida cotidiana, como em contextos de excepcionalidade, abreviando o distanciamento físico entre as pessoas e promovendo o acolhimento de gestos, narrativas e expressões e sentimentos diversos. Viver a pandemia na zona rural do Cariri Paraibano: conversas com crianças trata de uma “escuta exploratória” com crianças do assentamento Mandacaru, localizado no Cariri paraibano, sobre as vivências delas no campo no contexto da pandemia, sobretudo as relações delas com a escola. Escrito por Fernanda de Lourdes Almeida Leal (UFCG), Kátia Patrício Benevides Campos (UFCG) e Rayffi Gumercindo Pereira de Souza (UFPB), o capítulo discute, entre outras questões, o conceito de experiência em Benjamin e a própria ideia de “escuta exploratória”, que encontra lastro nas narrativas das crianças. A segunda parte da obra começa com as reflexões de Camile Pazda Fagundes Valério (UFPR) e Catarina Moro (UFPR), que tematizaram a Convenção sobre os Direitos das Crianças (CDC), discutindo mais especificamente a questão do direito à participação, no contraponto com o direito e garantia de proteção às crianças. Fundamentadas em vários pensadores, as autoras reconhecem os notáveis avanços representados pela CDC, suas repercussões e tensionamentos. Segundo elas, ao mesmo tempo, há desafios a serem enfrentados quando se trata dos direitos das crianças, especialmente na conquista por políticas mais inclusivas, sem sucumbir a uma visão adultocêntrica, eurocêntrica e centrada no Hemisfério Norte e no Ocidente. Sandro Machado (UFRGS) e Rodrigo Saballa de Carvalho (UFRGS) observam em seu artigo que há um fenômeno em curso, nomeado como a crise decorrente da pandemia gerada pelo Covid-19, e que, como consequência, as pesquisas estão passando por uma série de (re)adequações, sobretudo no que se refere às escolhas teórico-metodológicas. Conforme afirmam, no tocante às pesquisas envolvendo crianças, pesquisadoras e pesquisadores têm debatido a respeito da importância da reafirmação dos direitos das crianças e do respeito a elas nos contextos investigativos, a partir dos desafios emergentes dos protocolos sanitários e da ascendente desigualdade econômica que temos enfrentado do Norte ao Sul do nosso país. Tendo como base os Estudos Sociais da Infância, os autores refletem sobre como as pesquisas com crianças, nos seus possíveis percursos investigativos, podem contribuir para uma produção acadêmica que está sendo desenvolvida em meio a um momento controverso e de crise, como o que estamos vivendo. Léa Tiriba (UNIRIO), Amanda Vollger (UNIRIO) e Jéssica Elias Pereira (UNIRIO), interessadas na aprendizagem com os povos indígenas brasileiros sobre os saberes necessários a um convívio equilibrado entre seres humanos e o cosmos, compartilham, em seu texto, achados de pesquisa sobre a educação de suas crianças indígenas, pautada em princípios de liberdade, conexão com o cosmos, autonomia e alegria. Os achados aqui apresentados são frutos de pesquisa bibliográfica, análise de teses e dissertações e artigos de universidades públicas do Sudeste brasileiro, como também depoimentos de lideranças e visitas a aldeias indígenas. Os referenciais teóricos são buscados em filosofias não hegemônicas e em epistemologias nativas. Jaqueline Pasuch (UNEMAT) e Alceu Zoia (UNEMAT) apresentam reflexões realizadas no âmbito de dois grupos de pesquisa, baseados na UNEMAT, que buscam ampliar os estudos acerca da educação das crianças na diversidade, com ênfase nos modos de vivências das infâncias no campo, na floresta e nas comunidades indígenas pertencentes ao bioma amazônico de Mato Grosso, além de acompanhar processos formativos para educadores(as) do campo. No desenvolvimento de vários projetos de pesquisa e extensão, cujo foco central são as infâncias na diversidade da Amazônia mato-grossense, os autores têm procurado articular ações de ensino-aprendizagem compartilhadas nas experiências vividas em contextos diversos, seja em populações do campo e da floresta, como também nas comunidades indígenas, contribuído com subsídios para a implementação de políticas públicas educacionais específicas para o atendimento com qualidade a essas populações. Concluindo as reflexões desta segunda parte, Beatriz Soares Gonçalves (UFPB) e Flávia Ferreira Pires (UFPB) tematizam a fome no Brasil e seus impactos sobre as crianças, chamando a atenção dos(as) pesquisadores(as) das infâncias para o seu necessário compromisso com as crianças em contextos de crise. As autoras apresentam dados que revelam a atual crise que assola a população brasileira, concentrando-se naqueles que apontam as estatísticas a respeito das crianças. Trata-se de uma reflexão – a partir de uma análise socioantropológica do fenômeno da fome – sobre a potencialidade de traçarmos caminhos para uma mudança social, a partir de pesquisas, atuações e produções de conhecimento comprometidas com a garantia dos direitos das crianças. O prefácio deste livro, escrito pela professora e pesquisadora Maria Carmen Silveira Barbosa (UFRGS) – nossa querida Lica – constitui-se como uma contribuição que nos convida a continuar pensando e perguntando sobre como nós, pesquisadores(as) das infâncias, podemos acolher os questionamentos do nosso tempo, de modo a dialogar de perto com as formulações e problemáticas que as crianças, de diversos modos, têm escancarado e que se dirigem à escola e à sociedade, de um modo geral. Esperamos que esta obra circule entre aqueles e aquelas que pesquisam com e sobre crianças e que, sobretudo, fazem com elas uma aliança ética na direção de um compromisso com seus sentires e fazeres em todos os tempos e lugares. A produção deste texto coletivo deu-se, também, graças ao compromisso assumido pelos autores e autoras que não se furtaram a colocar em palavras escritas seus pensamentos, suas vivências, experiências e seus afetos, produzindo, com isso, uma grande e profícua roda de conversas, para a qual convidamos cada leitor e cada leitora a entrar. Nossos sinceros agradecimentos a cada um e cada uma deles(as). Sintam-se acolhidos(as) e ótima leitura! Publicação EDUEPB disponível no site: http://eduepb.uepb.edu.br/e-books