Dinâmica relacional das redes sociais significativas no processo de adoecimento de pessoas com cirrose hepática alcoólica

Dissertação (mestrado) - Universidade Federal de Santa Catarina, Centro de Filosofia e Ciências Humanas, Programa de Pós-Graduação em Psicologia, Florianópolis, 2018.A cirrose hepática alcoólica (CHA) é uma doença crônica, de curso progressivo e potencialmente letal. Caracteriza-se por ser um fenômeno multideterminado, multidimensional e complexo, com demandas que exigem o acionamento de pessoas e serviços em torno dos indivíduos com esse diagnóstico. O histórico de uso abusivo e crônico do álcool faz com que haja, de forma acentuada, um processo de afastamento de pessoas do entorno do indivíduo com CHA, tornando sua rede social significativa restrita, frágil e, de certo modo, invisível às instituições de saúde. Consoante isso, esta pesquisa, caracterizada como qualitativa, descritivo-exploratória e de recorte transversal, teve por objetivo compreender a dinâmica relacional das redes sociais significativas no contexto do processo de adoecimento de pessoas com cirrose hepática alcoólica, atendidas em um hospital geral. O pressuposto epistemológico que permeou a construção do presente estudo fundamenta-se no Pensamento Complexo, que permite compreender os fenômenos saúde e doença como processos multifacetados, que acontecem em contexto e são engendrados na interação. Participaram da pesquisa doze pessoas com diagnóstico clínico de cirrose hepática alcoólica, atendidas em um hospital geral. Para a coleta de dados foram utilizados: a entrevista semiestruturada individual e o Mapa de Redes. O processo de integração e análise dos dados foi realizado por meio da Teoria Fundamentada (Grounded Theory) conjuntamente com os recursos do software Atlas-ti versão 7.5.7. Para sistematização da apresentação e discussão dos resultados, foram construídos três artigos que se interconectam entre si e que sintetizam os achados desse estudo, quais sejam: 1. Identificou-se a forma com que é estabelecida relação com o corpo no processo de adoecimento e a posição em que o indivíduo se coloca a partir dessa relação, sendo que ao longo dos anos de uso abusivo do álcool, o corpo tem seu controle ditado pelo beber e sua concretude é anestesiada e negada. Somente quando esse corpo se impõe, pela deterioração e com marcadores bastante dolorosos da doença, é que não há mais como negar a sua existência e inferiu-se que, é no processo de diagnóstico da CHA, que acontece a quebra ou pelo menos o enfraquecimento da negação dos prejuízos do uso abusivo de crônico do álcool. 2. No momento de localizar e entrar em contato com a doença já instalada é o pragmatismo que a define, ou seja, a doença é descrita por meio dos sintomas e alterações marcados no corpo. 3. A doença CHA é significada como punição, como um castigo pelo uso do álcool, o que conduz a uma posição do indivíduo em relação ao enfrentamento, expressa pela necessidade de precisar passar por esse sofrimento, de suportar esse sofrimento para se redimir. 4. As redes sociais significativas constituíram-se como pequenas e médias, compostas pelas relações familiares, de amizade e relações comunitárias, com maior densidade nos vínculos da Família. 5. O predomínio dos vínculos significativos foi com figuras do sexo masculino e os vínculos mais próximos e que se relacionam diretamente com o cuidado, são predominantemente com figuras do sexo feminino. 6. O cuidado se organiza por níveis de interação com o participante, sendo que quanto mais próximas e íntimas são as relações, maior é o desempenho de funções ligadas diretamente ao cuidado cotidiano em todos os âmbitos (apoio emocional, guia cognitivo e de conselhos, regulação - ou controle social). Conforme as relações se distanciam em nível de intimidade, as funções que predominam são de companhia social e auxílio material e de serviços, configurando-se como de suporte aos vínculos mais próximos. 7. Houve uma aproximação com os vínculos familiares após o diagnóstico e uma ruptura com os vínculos da rede configurada antes da doença e ligada ao uso abusivo e crônico do álcool. 8. A relação com os serviços de saúde e agências sociais aparecem de forma ambivalente e restrita. 9. Há um movimento de ruptura nas relações de trabalho, que são praticamente inexistentes nesse momento de vida dos participantes. Concluiu-se que tomar o fenômeno da CHA a partir da perspectiva da complexidade, implica considerar que não se trata somente da doença, de seu processo diagnóstico, da definição e vivência de um tratamento, mas de um processo em que estão imbricados tanto uma série de aspectos visíveis, concretos, como todo um contexto determinado por crenças e valores do indivíduo, vinculados à doença e ao adoecer, que afetam decididamente a posição do indivíduo no enfrentamento e que são importantes norteadores na construção dos significados. Do mesmo modo, os dados que emergiram expressaram que a CHA tensiona os vínculos relacionais em todos os setores da vida do indivíduo e, nesse sentido, conhecer a radiografia dos vínculos e a trama relacional que se estabelece a partir do adoecimento da CHA permite às equipes de saúde responsáveis pelo planejamento do cuidado desses indivíduos, ampliar as possibilidades de visibilização e de acionamento de pessoas que podem ser corresponsáveis, de modo efetivo, pelo cuidado, haja vista serem reconhecidas pelos próprios indivíduos como significativos e exercendo funções relevantes em sua vida.Abstract : Alcoholic liver cirrhosis (ALC) is a chronic disease, progressing and potentially lethal. It is characterized by being a multidetermined, multidimensional and complex phenomenon, with demands that require the activation of people and services around individuals with this diagnosis. The history of abusive and chronic use of alcohol causes that there is, in a marked way, a process of removal of people from the environment with the ALC, making its social network significant restricted, fragile and, in a sense, invisible to health institutions. Accordingly, this research, characterized as qualitative, descriptive-exploratory and cross-sectional, aimed to understand the relational dynamics of significant social networks in the context of the process of illness of people with alcoholic liver cirrhosis attended in a general hospital. The epistemological assumption that permeated the construction of the present study is based on the Complex Thought, that allows to understand the phenomena \"health and disease\" as multifaceted processes, that happen in context and are engendered in the interaction. Twelve people with clinical diagnosis of alcoholic liver cirrhosis attended at a general hospital participated in the study. For data collection, the individual semi-structured interview and the Network Map were used. The data integration and analysis process was carried out using Grounded Theory in conjunction with Atlas-ti software features version 7.5.7. For the systematization of the presentation and discussion of the results, three articles were constructed that interconnect each other and that synthesize the findings of this study, which are: 1. It was identified the form with which is established relation with the body in the process of illness and the position in which the individual is placed from this relationship, and that over the years of abusive use of alcohol, the body has its control dictated by drinking and its concreteness is anesthetized and denied. It is only when this body imposes itself, through deterioration and with very painful markers of the disease, that it is no longer possible to deny its existence and it has been inferred that it is in the diagnostic process of ALC that the break occurs or at least the weakening of the denial of the damages of the abusive use of chronic alcohol. 2. At the moment of locating and getting in touch with the already installed disease is the pragmatism that defines it, that is, the disease is described through the symptoms and marked changes in the body. 3. The ALC disease is meant as a punishment for alcohol use, which leads to a position of the individual in relation to the confrontation, expressed by the need to have to go through this suffering, to endure this suffering to be redeemed. 4. Significant social networks were small and medium-sized, composed of family relationships, friendship and community relations, with a greater density in the Family ties. 5. The predominance of significant ties was with male figures and the closest ties that are directly related to care are predominantly female figures. 6. Care is organized by levels of interaction with the participant, and the closer and more intimate the relationships, the greater the performance of functions directly related to daily care in all areas (emotional support, guidance and counseling, regulation - or social control). As relationships distance themselves in the level of intimacy, the predominant functions are social company and material assistance and services, configuring themselves as support to the closest bonds. 7. There was an approximation with the family ties after the diagnosis and a rupture with the network links configured before the disease and linked to the abusive and chronic use of alcohol. 8. The relationship with health services and social agencies appears ambivalent and restricted. 9. There is a movement of rupture in labor relations, which are practically nonexistent in this moment of life of the participants. It was concluded that taking the ALC phenomenon from the perspective of complexity implies considering that it is not only the disease, its diagnostic process, the definition and experience of a treatment, but a process in which both a series of visible, concrete aspects, such as a whole context determined by the beliefs and values of the individual, linked to illness and illness, that decisively affect the individual's position in the confrontation and that are important guiding principles in the construction of meanings. Likewise, the data that emerged expressed that the ALC stresses the relational links in all the sectors of the individual's life and, in this sense, to know the radiography of the links and the relational network that establishes from the illness of the ALC allows the teams health care professionals responsible for planning the care of these individuals, to increase the possibilities of visibilization and activation of people who can be effectively co-responsible for care, since they are recognized by the individuals themselves as significant and performing relevant functions in their life