O escutador emancipado: estética, política e escuta em torno de Jacques Rancière

O espectador é uma das questões mais importantes nos debates culturais e sociopolíticos que marcaram o século XX e é, ainda hoje, objecto de diversas reflexões. Apesar da amplitude dos debates contemporâneos em torno da subjectividade artística e estética, persiste uma concepção do espectador como agente passivo e perpetuador da sua própria condição. Evidencia-se, assim, a necessidade de politizar o seu pensamento, ao mesmo tempo que se revela a dificuldade inerente a esta politização: a alternância entre actividade e passividade como elementos caracterizadores da prática de espectar. Assemelhando-se à experiência do espectador, o acto de escutar pressupõe a recepção passiva de obras sonoras, inserido num leque de práticas sociais que legitimam a sua realização e o processo de apreciação das artes. Deste modo, a ligação entre espectador e escutador terá de ser analisada à luz de múltiplas perspectivas no âmbito da estética, dos estudos de som e da escuta. Apoiando-se no quadro teórico das obras de Jacques Rancière em torno dos conceitos de “espectador emancipado” e “partilha do sensível”, esta dissertação tem como principal objectivo examinar a escuta na sua dimensão estético-política, estabelecendo um paralelo entre “espectador” e “escutador”, de modo a aplicar ao domínio das artes sonoras o gesto político que o autor adopta no domínio das artes visuais e cénicas. Acompanhando tradições com uma natureza estática (em comparação com as que visam o espectador), focam-se noções teóricas e correntes artísticas como a “escuta reduzida”, a crítica à regressão desta, o serialismo e o espectralismo, que, com a ambição de enaltecer a música e a escuta, procuraram autonomizá-las, estabelecendo directrizes específicas para tal. Assim, o gesto de Rancière sugere uma terceira via. Mobilizando os conceitos de “política” e “polícia” no quadro do “regime estético das artes”, torna-se possível recusar uma estética embrutecedora e purista e abrir caminho à igualdade no processo de emancipação.The spectator is one of the most important issues in the cultural and socio-political debates that marked the 20th century and is still today the object of several deliberations. Despite the scope of contemporary debates around artistic and aesthetic subjectivity, the idea of the spectator as a passive agent and perpetuator of their own condition persists. Thus, the need to politicize their thinking becomes evident, while at the same time revealing the difficulty inherent in this politicization: the alternation between activity and passivity as characterizing elements of the practice of spectatorship. Similar to the experience of the spectator, the act of listening presupposes the passive reception of sound art, inserted into a range of social practices that legitimise their performance and the process of contemplation of the arts. Thus, the connection between spectator and listener will have to be analysed in the light of multiple perspectives within the scope of aesthetics, sound studies and listening. Drawing on the theoretical framework of the works of Jacques Rancière around the concepts of “emancipated spectator” and “distribution of the sensible”, this dissertation's main objective is to examine listening in its aesthetic-political dimension, establishing a parallel between “spectator” and “listener” in order to apply to the field of sound arts the political gesture that the author adopts in the domain of visual and performing arts. Following traditions with a static nature (in comparison to those that aim at the spectator), theoretical notions and artistic movements are focused on, such as “reduced listening”, the critique of its regression, serialism and spectralism, which, with the ambition of praising music and listening, sought to autonomize them, establishing specific guidelines for such. Thus, Rancière's gesture suggests a third way. By mobilising the concepts of “politics” and "police” in the framework of the “aesthetic regime of the arts”, it becomes possible to refuse a stultifying and purist aesthetic and open the way to equality in the process of emancipation