A reserva de direitos de terceiros no ato de licenciamento e o Princípio da Legalidade da Administração

É doutrinal, jurisprudencial e constitucionalmente aceite que o direito de propriedade não é um direito absoluto. Esse direito de propriedade, enquanto direito fundamental, coenvolve os poderes de uso, fruição e disposição da coisa sobre que incide, apenas se aceitando as limitações impostas por lei. Como nos refere Correia, F. A. (1997), é aos tribunais e não à Administração Pública que compete verificar o respeito pelas situações jurídico privadas e, dessa forma, a licença de construção não é o instrumento adequado, desde logo porque no licenciamento de operações urbanísticas estabelece-se uma relação jurídica entre a Administração e os interessados onde o que se tem em vista é a verificação do cumprimento de regras urbanísticas. Daqui a doutrina tem construído, no domínio do Direito do Urbanismo e da Edificação, o denominado “princípio da independência das legislações”, do qual resulta que se um município se depara com um pedido de licenciamento de uma operação urbanística, apenas terá que considerar as normas do direito urbanístico, e, uma vez concedido o licenciamento, os direitos privados de terceiros não são afetados. O argumento mais decisivo prende-se com o cumprimento do princípio da separação de poderes, que remete para os tribunais a resolução de conflitos entre os particulares – que cominaria com nulidade, por usurpação de poderes, os atos administrativos que se arrogassem o poder para dirimir conflitos entre particulares, como defendem, por exemplo, Oliveira, F. P. & Lopes, D. (2005). De todo o modo, “desaplicando” as normas civilistas, a Administração Pública, entenda-se os municípios, podem, consequentemente ao ato de licenciamento, ver-se confrontados com situações que questionam os termos da vinculação administrativa ao Direito, em especial, na garantia do princípio da legalidade administrativa, que não se limita ao cumprimento das disposições de Direito Administrativo, mas implica a “navegação de um cosmos” cada vez mais complexo, de origem nacional, europeia e internacional, com complexos poderes de desaplicação da legalidade no respeito dos direitos fundamentais, em especial do direito de propriedade dos terceiros afetados. Questionamo-nos, pois, se é possível aceitar que a Administração Pública, que se pretende cada vez mais exigente no cumprimento do princípio da legalidade, se abstenha, de todo, de conhecer da garantia dos direitos dos terceiros afetados pelo licenciamento de uma determinada operação urbanística, sob pena de, designadamente, incorrer numa situação de responsabilidade civil extracontratual. É neste cenário, que é recorrente, que nos propomos analisar se o denominado “primado do Direito da Urbanização e da Edificação” desaplicando as normas civilistas, coloca a Administração Pública, em abstrato, na contingência de ferir o Princípio da legalidade Administrativa