Clínicos gerais : construção de práticas profissionais no contexto dos Centros de Saúde

Tese de mestrado em Ciências da Educação (Pedagogia na Saúde) apresentada à Universidade de Lisboa através da Faculdade de Psicologia e de Ciências da Educação, 1994A última década tem sido marcada por uma vaga de fundo que pretende transformar o panorama da saúde em Portugal. Importante legislação tem sido produzida, desde a criação do serviço nacional de saúde e a formulação das carreiras médicas, à lei de bases da saúde. A organização de uma rede de cuidados de saúde primários (CSP), em articulação com os cuidados secundários, constituiu, em dada altura, referência obrigatória do sistema de saúde. Nos dias que correm, a publicação do novo estatuto do serviço nacional de saúde (SNS), se parece revelar que se procura caminhar no sentido da desejável integração de cuidados, traz no entanto, algumas dúvidas sobre o papel a atribuir aos clínicos gerais e aos CSP no serviço nacional de saúde, que vem perdendo algumas das características iniciais. A cobertura médico-sanitária da totalidade da população, sob a responsabilidade do estado, e a organização de redes compreensivas de cuidados integrados, parecem constituir, contudo, pontos assentes das políticas de saúde actuais e vindouras. Se a questão das fontes de financiamento do SNS se vem colocando, sugerida aliás, nas modificações que culminaram na expressão "cuidados tendencialmente gratuitos" em vez da expressão original que apontava para cuidados universais e gratuitos, já a noção de que uma primeira estrutura deve providenciar cuidados preventivos e curativos, no âmbito de uma medicina humanizada, centrada nos indivíduos e famílias, parece constituir um dado adquirido. Não só se permite satisfazer as necessidades das populações em matéria de cuidados básicos de saúde, modificando as condições e rapidez do acesso aos cuidados, com níveis de eficácia razoáveis, como também e, indirectamente, se reduz a sobrecarga dos hospitais. A imposição desta estratégia levou à revalorização da clínica geral e do seu papel junto da comunidade de utentes. No entanto, o modelo de cuidados que impregna o normativo-ideológico está em ruptura com a tradição de cuidados e a formação recebida. A focalização não na doença, mas no indivíduo, não na cura, mas na prevenção, coloca um desafio que só os profissionais, clínicos-gerais / médicos de família, na vivência do dia a dia nos locais onde tabalham, os centros de saúde, e na relação próxima com a comunidade e seus problemas específicos, podem ir resolvendo. Mas para além dos princípios, cuja interiorização se desconhece, e dos profissionais, na sua maioria pertencentes a uma mesma e jovem geração, de uma jovem carreira médica, em busca de uma identidade própria, não podemos deixar de considerar o papel dos contextos na determinação das práticas. A natureza das organizações, constructos humanos, artificiais, leva a admitir que as dinâmicas que se desenvolvem diferem de caso para caso, e que, é sempre um todo que está em jogo na construção das práticas. Atribuindo valor, não apenas ao quadro formal da instituição, mas também ao conjunto das relações informais, das estratégias dos actores em função das diferentes percepções de oportunidades e constrangimentos que se lhes deparam ou impõem, e das margens de liberdade que decidem ou não ocupar, propômo-nos, ainda que a nível exploratório, investigar as práticas na vivência dos actores colhendo as suas percepções sobre dimensões do contexto e do modelo de cuidados. O presente trabalho procura, pois, abordar a problemática da construção de novas práticas profissionais em clínica geral no contexto dos centros de saúde, tendo em conta a presente fase de transição na organização dos cuidados de saúde em Portugal. Salientamos alguns dos pressupostos que ajudam a definir o quadro em que a investigação se move: 1° - Os centros de saúde constituem os contextos onde se processa o exercício da clínica geral / medicina familiar. Sucedendo às antigas "caixas" (ex-serviços médico-sociais), pretende-se que venham a desenvolver práticas substancialmente diferentes, pese embora o lastro herdado da antiga instituição que perdura até aos nossos dias não só ao nível da imagem pública, negativa, como também ao nível de profissionais, práticas e modalidades de funcionamento, contrariando as mudanças desejáveis. 2° - Emergência ao nível do normativo-ideológico de uma nova filosofia de cuidados, em ruptura com a tradição quer formativa quer dos próprios cuidados. Este dado leva a colocar a questão da reformulação das práticas, tendo por base os próprios profissionais e a formação nos contextos de trabalho, pois as práticas não se mudam sem a sua participação, por simples decreto. As diferentes dimensões do contexto, físico e organizativo, e também os aspectos ligados ao percurso individual, interesses pessoais e orientação fará o novo modelo de cuidados, constituem dados que influem, de forma variável, na construção de práticas profissionais. Podem também, no seu conjunto, contribuir para a criação de um clima compatível com o aparecimento de dinâmicas formativas, de tipo informal, ligadas às especificidades dos contextos, às dificuldades que se colocam e às necessidades sentidas pelos que exercem no terreno. (...